10- TEORIA
“Posso perguntar só mais uma?”, ela suplicou ao invés de responder ao que eu pedia.
Eu estava no limite, ansioso pelo pior. Mesmo assim, era muito tentadora a idéia de prolongar este momento. De ter Bella comigo, por vontade própria, por apenas mais alguns segundos. Eu suspirei com o dilema, e então disse, “uma”.
“Bem...”, ela hesitou por um momento, como se estivesse decidindo qual pergunta fazer. “Você disse que sabia que eu não tinha entrado na livraria, e que eu tinha ido para o sul. Estava pensando como você sabia disso?”.
Eu olhei para o retrovisor. Outra pergunta que não revelava nada da parte dela, e coisas demais da minha.
“Pensei que tivéssemos superado as evasivas”, ela disse, seu tom crítico e desapontado.
Que irônico. Ela era implacavelmente evasiva, sem nem ao menos fazer força.
Bem, ela queria que eu fosse direto. E esta conversa não estava tomando um bom rumo, de qualquer forma.
“Está bem então”, eu disse. “Eu segui o seu cheiro”.
Eu queria analisar seu rosto, mas tinha medo do que veria. Ao invés disso, escutei sua respiração acelerando e depois se acalmando. Ela falou novamente depois de um momento, e sua voz estava mais composta do que eu teria esperado.
“E aí você não respondeu uma das minhas primeiras perguntas...”, ela disse.
Eu baixei os olhos para ela, franzindo a testa. Ela estava prolongando o momento, também.
“Qual?”
“Como funciona – essa coisa de ler mentes?”, ela perguntou, reiterando a questão que havia feito no restaurante. “Você consegue ler a mente de qualquer um, em qualquer lugar? Como você faz? O resto da sua família também...?”. Sua voz foi sumindo, e ela corou.
“Foram mais que uma”, eu disse.
Ela apenas me olhou, esperando por suas respostas.
E por que não contar a ela? Ela já havia adivinhado a maior parte, e este assunto era mais fácil do que o que viria a seguir.
“Não, sou só eu. E não consigo ouvir qualquer pessoa em qualquer lugar. Tenho que estar a uma certa proximidade. Quanto mais familiar a... ‘voz’ da pessoa, mais de longe eu consigo ouvi-la. Mas ainda assim, não mais que alguns quilômetros”. Eu tentei pensar numa maneira de descrever para que ela pudesse entender. Uma analogia com que ela pudesse relacionar. “É meio como se fosse estar numa sala gigantesca cheia de gente, todos falando ao mesmo tempo. É tudo um zumbido – um farfalhar de vozes no plano de fundo. Até que eu focalize em uma voz, e então o que esta pessoa está pensando fica claro. Na maior parte do tempo eu tiro todas elas de sintonia – é muito fácil ser distraído por elas. E também que fica mais fácil parecer normal –“, eu fechei a cara – “quando não estou acidentalmente respondendo aos pensamentos de alguém ao invés de às suas palavras”.
“Por que você acha que não consegue me ouvir?”, ela imaginou.
Dei-lhe outra verdade e outra analogia.
“Não sei”, admiti. “O único palpite que tenho é que talvez sua mente não funcione do mesmo jeito que as outras. Como se seus pensamentos estivessem na freqüência AM e eu só captasse FM”.
Eu percebi que ela não iria gostar dessa analogia. A antecipação de sua reação me fez sorrir. Ela não me desapontou.
“Minha mente não funciona do jeito certo?”, ela perguntou, sua voz mortificada. “Eu sou uma anormal?”
Ah, a ironia de novo.
“Eu ouço vozes na minha mente e você está preocupada se você é a anormal”, eu ri.
Ela captava todos os pequenos detalhes, mas os maiores ela entendia completamente ao contrário. Sempre os instintos errados...
Bella mastigava o lábio, e a ruga entre seus olhos estava mais marcada.
“Não se preocupe”, eu lhe disse novamente. “É apenas uma teoria...”. E havia uma teoria mais importante a ser discutida. Eu estava ansioso para acabar com isso logo. Cada segundo que passava começava a parecer mais e mais como um tempo emprestado.
“O que nos leva de volta a você”, eu disse, dividido em dois, ao mesmo tempo ansioso e relutante.
Ela suspirou, ainda mastigando o lábio – eu fiquei preocupado com a possibilidade de que ela se machucasse. Ela me olhou nos olhos, sua face perturbada.
“Nós não havíamos superado as evasivas?”, perguntei silenciosamente.
Ela olhou para baixo, envolvida em algum dilema interno. De repente, ela enrijeceu e seus olhos se arregalaram. Seu rosto demonstrava medo pela primeira vez.
“Pai do céu!”, ela engasgou.
Eu entrei em pânico. O que ela teria visto? Como eu a teria assustado?
Então ela gritou, “diminua!”
“O que foi?”, eu não entendia de onde o terror estava vindo.
“Você está a cento e sessenta por hora!”, ela gritou comigo. Deu uma espiada para fora da janela, e se encolheu das árvores escuras passando rapidamente por nós.
Uma coisa tão pequena, só um pouquinho de velocidade, e ela estava gritando de medo?
Eu rolei os olhos. “Relaxa, Bella”.
“Você está tentando nos matar?”, ela demandou, sua voz alta e forte.
“Nós não vamos bater”, eu lhe prometi.
Ela aspirou o ar numa inalada forte, e então falou com um tom levemente mais composto. “Por que você está com tanta pressa?”
“Eu sempre dirijo assim”.
Eu encontrei seu olhar, divertido por sua expressão chocada.
“Mantenha os olhos na pista!”, ela gritou.
“Eu nunca sofri um acidente, Bella. Eu nunca sequer tomei uma multa”. Eu sorri para ela e dei um tapinha em minha testa. Isso fez tudo parecer ainda mais cômico – o absurdo de ser capaz de brincar com ela sobre algo tão secreto e estranho. “Detector de radar embutido”.
“Muito engraçado”, ela disse sarcasticamente, sua voz mais assustada que irritada. “Charlie é um policial, lembra? Eu fui ensinada a seguir as leis de trânsito. Além do mais, se você nos transformar numa sanfona de Volvo batendo em alguma árvore, você provavelmente conseguiria levantar e sair andando”.
“Provavelmente”, eu repeti, e então ri sem humor. Sim, nós lidaríamos muito diferente com um acidente de carro. Ela estava certa de ter medo, apesar das minhas habilidades de direção... “Mas você não conseguiria”
Com um suspiro, eu deixei o carro passar a engatinhar. “Contente?”
Ela olhou para o velocímetro. “Quase”.
Isso ainda era rápido demais para ela? “Eu odeio dirigir devagar”, resmunguei, mas deixei o marcador descer um pouco mais.
“Isso é devagar?”, ela perguntou.
“Basta de comentários sobre como eu dirijo”, eu disse impacientemente. Quantas vezes ela havia desviado de minha pergunta agora? Três? Quatro? Será que suas especulações eram tão terríveis? Eu tinha que saber – imediatamente. “Ainda estou esperando por sua última teoria”.
Ela mordeu o lábio de novo, e sua expressão tornou-se chateada, quase aflita.
Eu dominei minha impaciência e suavizei minha voz. Não queria atormentá-la.
“Não vou rir”, prometi, desejando que fosse apenas por embaraço que ela não estivesse querendo falar.
“Estou com mais medo que você fique bravo comigo”, ela suspirou.
Eu forcei minha voz para que parecesse composta. “É tão ruim assim?”.
“Um tanto, é”.
Ela olhou para baixo, se recusando a encontrar meus olhos. Os segundos se passaram.
“Vá em frente”, eu encorajei.
Sua voz estava fraca. “Eu não sei por onde começar”.
“Por que você não começa do início?”. Eu a lembrei de suas palavras antes do jantar. “Você disse que não havia criado essa sozinha”.
“Não”, ela concordou, e então ficou quieta de novo.
Eu pensei que coisas poderiam tê-la inspirado. “O que te inspirou – um livro? Um filme?”
Eu deveria ter checado sua coleção de livros quando ela estava fora de casa. Eu não fazia idéia se Bram Stocker ou Anne Rice estavam em sua pilha de livros desgastados...
“Não”, ela disse novamente. “Foi sábado, na praia”.
Eu não havia esperado aquilo. As fofocas locais sobre nós nunca haviam chegado a um ponto muito bizarro – ou muito preciso. Havia algum rumor novo que eu tinha perdido? Bella levantou os olhos de suas mãos e viu a surpresa no meu rosto.
“Eu encontrei um velho amigo da família – Jacob Black”, ela continuou. “Seu pai e Charlie são amigos desde que eu era bebê”.
Jacob Black – o nome não era familiar, mas ainda assim me recordava de algo... alguma vez, há muito tempo... eu olhei para fora do pára-brisas, repassando minhas memórias para encontrar alguma conexão.
“Seu pai é um dos anciões Quileute”, ela disse.
Jacob Black. Ephrain Black. Um descendente. Sem dúvida.
Era tão ruim quanto poderia ser.
Ela sabia a verdade.
Minha mente voava pelos possíveis desdobramentos conforme o carro voava pelas curvas escuras da estrada, meu corpo rígido com a angústia – estático exceto pelos pequenos e automáticos movimentos necessários para dirigir o carro.
Ela sabia a verdade.
Mas... se ela havia descoberto a verdade no sábado... então ela já havia estado ciente durante toda a noite... e ainda assim...
“Nós saímos para um passeio”, ela continuou. “E ele estava me contando algumas lendas antigas – tentando me assustar, eu acho. E ele me contou uma...”
Ela parou brevemente, mas não havia motivos para seus escrúpulos agora; eu sabia o que ela iria dizer. O único mistério que permanecia era porque ela estava aqui comigo agora.
“Vá em frente”, eu disse.
“Sobre vampiros”, ela respirou, as palavras mais fracas que um suspiro.
De alguma forma, era ainda pior que saber que ela sabia, ouvi-la dizer a palavra em voz alta. Eu me contraí com o som, e então me controlei novamente.
“E você imediatamente pensou em mim?”, perguntei.
“Não. Ele... mencionou sua família”.
Quão irônico que seria justamente o próprio descendente de Ephraim quem violaria o pacto que ele havia jurado manter. Um neto, ou bisneto talvez. Quantos anos haviam se passado? Setenta?
Eu devia ter percebido que não eram os homens velhos que acreditavam nas lendas que representavam perigo. Claro, a geração mais jovem – aqueles que haviam sido avisados, mas que pensavam nas lendas antigas como motivo de riso – claro que era ali que morava o perigo de sermos expostos.
Eu supus que isto significava que agora eu estaria livre para massacrar a pequena, vulnerável tribo que vivia na costa, se eu me sentisse inclinado a isso.
“Ele pensa que era só uma superstição boba”, disse Bella subitamente, sua voz repleta de um novo nervosismo. “Ele não achava que eu fosse tirar qualquer conclusão dela”.
“Foi minha culpa”, ela disse depois uma breve pausa, e então agarrou sua cabeça como se estivesse envergonhada. “Eu forcei-o a me dizer”.
“Por que?”. Não era tão difícil manter minha voz estável agora. O pior já havia passado. Enquanto conversássemos sobre os detalhes da revelação, nós não teríamos que passar a discutir suas conseqüências.
“Lauren disse algo sobre você – ela estava tentando me provocar”. Ela fez uma pequena careta ao se lembrar. Eu fui levemente distraído por isso, imaginando como Bella poderia ser provocada por alguém falando de mim... “E um garoto mais velho da tribo disse que sua família não ia à reserva, mas soou como se quisesse dizer outra coisa. Então eu consegui ficar sozinha com Jacob e enganei-o para tirar a informação dele”.
Sua cabeça caiu ainda mais quando ela admitiu isso, e sua expressão parecia... culpada.
Eu desviei o olhar dela e dei uma risada alta. Ela se sentia culpada? O que seria possível que ela tivesse feito para merecer qualquer tipo de censura?
“Enganou-o como?”, perguntei.
“Eu tentei flertar – funcionou melhor do que eu pensava”, ela explicou, e sua voz ficou incrédula com a lembrança de seu sucesso.
Eu podia apenas imaginar – considerando a atração que ela parecia exercer sobre todas as coisas masculinas, totalmente inconsciente do que estava fazendo – o quão irresistível ela seria quando tentasse ser atraente. De repente eu estava cheio de pena do garoto ingênuo sobre quem ela havia lançado uma força tão potente.
“Eu gostaria de ter visto esta cena”, eu disse, e então ri novamente com meu humor negro. Eu desejava poder ter ouvido a reação do garoto, testemunhado a devastação com meus próprios olhos. “E você me acusa de deslumbrar as pessoas – pobre Jacob Black”.
Eu não estava tão irritado com a fonte de minha exposição quanto teria esperado ficar. Ele não tinha noção. E como eu poderia esperar que qualquer um negasse a esta garota o que ela quisesse? Não, eu senti apenas simpatia pelo dano que ela devia ter causado em sua paz de espírito.
Eu senti sua corada no ar entre nós. Quando a olhei, ela estava olhando para fora da janela. Ela não falou mais.
“O que você fez então?”, eu a incentivei. Era hora de voltar para a história de terror.
“Eu pesquisei algumas coisas na internet”.
Sempre prática. “E alguma coisa ali te convenceu?”
“Não”, ela disse. “Nada servia. A maioria eram coisas bobas. E então –”
Ela se interrompeu de novo, e eu ouvi sua mandíbula travando.
“O quê?”, demandei. O que ela teria descoberto? O que a havia feito perceber o pesadelo que isso era para ela?
Houve uma curta pausa, e então ela suspirou: “Eu decidi que não importava”.
O choque congelou meus pensamentos por um milésimo de segundo, e então tudo se encaixou. Por que ela havia dito para suas amigas irem embora esta noite ao invés de escapar com elas. Por que ela havia entrado no meu carro ao invés de fugir, gritando pela polícia...
Suas reações eram sempre erradas – sempre completamente erradas. Ela puxava o perigo em sua direção. Ela o convidava.
“Não importava?”, eu disse entre dentes, a raiva me preenchendo. Como seria possível para mim, defender alguém tão... tão... tão determinada a estar desprotegida?
“Não”, ela disse numa voz baixa e inexplicavelmente suave. “Eu não me importo com o que você é”.
Ela era impossível.
“Você não se importa se eu sou um monstro? Se eu não sou humano?”
“Não”.
Eu comecei a me perguntar se ela era inteiramente estável.
Eu supus que poderia arranjar para ela o melhor tratamento disponível... Carlisle teria os contatos para encontrar para ela os médicos mais habilidosos, os terapeutas mais talentosos. Talvez algo pudesse ser feito para consertar o que quer que houvesse de errado com ela, o que quer que fizesse ela ficar contente de se sentar ao lado de um vampiro com seu coração batendo calmo e de modo estável. Eu a vigiaria neste lugar, claro, e a visitaria com a máxima freqüência que me fosse permitida...
“Você está bravo”, ela suspirou. “Eu não devia ter dito nada”.
Como se ela esconder essas tendências perturbadoras fosse ajudar a qualquer um de nós.
“Não. Eu gostaria de saber o que você está pensando – mesmo que o que você esteja pensando seja insano”.
“Então estou errada de novo?”, ela perguntou, um pouco agressiva agora.
“Não é a isto que estou me referindo!”. Meus dentes se apertaram novamente. “´Não importa’!”, eu repeti num tom amargo.
Ela engasgou. “Estou certa?”
“Isso importa?”, eu rebati.
Ela respirou fundo. Eu esperei irritado por sua resposta.
“Na verdade não”, ela disse, com a voz composta novamente. “Mas estou curiosa”.
Na verdade não. Na verdade não importava. Ela não se importava. Ela sabia que eu não era humano, um monstro, e isso não importava para ela.
Mesmo com minhas preocupações com sua sanidade, comecei a sentir uma onda de esperança. Tentei anulá-la.
“Sobre o que você está curiosa?”, perguntei-lhe. Não havia mais segredos restantes, apenas detalhes menores.
“Quantos anos você tem?”, ela perguntou.
Minha resposta foi automática, a resposta habitual. “Dezessete”.
“E há quanto tempo você tem dezessete?”
Eu tentei não sorrir com seu tom condescendente. “Há um tempo”, eu admiti.
“Ok”, ela disse, abruptamente entusiasmada. Ela sorriu para mim. Quando eu a encarei de volta, nervoso de novo com sua condição mental, o sorriso aumentou. Eu fechei a cara.
“Não ria”, ela avisou. “Mas como você consegue sair durante o dia?”
Eu ri, apesar de seu pedido. Sua pesquisa não havia lhe fornecido nada muito fora do comum, aparentemente. “Mito”.
“Queimado pelo sol?”
“Mito”.
“Dormir em caixões?”
“Mito”.
Dormir não havia sido parte da minha vida durante tanto tempo – não até estas últimas noites, em que eu havia assistido Bella sonhar...
“Eu não posso dormir”, murmurei, respondendo sua pergunta mais completamente.
Ela ficou quieta por um momento.
“Nunca?”, ela perguntou.
“Nunca”, eu respirei.
Eu encarei dentro de seus olhos, arregalados sob a grossa camada de cílios, e ansiei por dormir. Não pelo alívio, não para escapar do aborrecimento, mas porque eu queria sonhar. Talvez, se eu fosse capaz de ficar inconsciente, se eu pudesse sonhar, eu poderia viver por algumas horas num mundo onde ela e eu pudéssemos ficar juntos. Ela sonhava comigo. Eu queria sonhar com ela.
Ela me encarou de volta, a expressão cheia de dúvida. Eu tive que desviar o olhar.
Eu não poderia sonhar com ela. Ela não deveria sonhar comigo.
“Você ainda não fez a pergunta mais importante”, eu disse, meu peito silencioso mais frio e duro que antes. Ela tinha que ser forçada a entender. Em algum momento, ela teria que perceber o que estava fazendo agora. Ela teria que ser forçada a ver o que tudo isso na verdade significava – mais do que qualquer outra consideração. Considerações como o fato de que eu a amava.
“Qual é?”, ela perguntou, surpresa e inconsciente.
Isso apenas deixou minha voz mais dura. “Você não está preocupada com a minha dieta?”
“Oh, isso”. Ela falou num tom quieto que eu não pude interpretar.
“Sim, isso. Você não quer saber se eu bebo sangue?”
Ela se contraiu com minha pergunta. Finalmente. Ela estava compreendendo.
“Bem, Jacob disse algo a respeito disso”, ela disse.
“O que Jacob disse?”
“Ele disse que você não... caça pessoas. Ele disse que não era para sua família ser perigosa, porque vocês só caçavam animais”.
“Ele disse que não éramos perigosos?”, eu repeti cinicamente.
“Não exatamente”, ela explicou. “Ele disse que não era para serem. Mas ainda assim os Quileutes não os querem nas terras deles, por via das dúvidas”.
Eu fixei o olhar na estrada, meus pensamentos num emaranhado insolúvel; minha garganta doendo com a familiar sede que a queimava.
“E então, ele estava certo?”, ela perguntou, tão calmamente quanto se estivesse confirmando a previsão do tempo. “Sobre não caçar pessoas?”
“Os Quileutes têm boa memória”.
Ela acenou com a cabeça para si mesma, pensando muito.
“Mas não permita que isso te deixe complacente. Nós ainda somos perigosos”.
“Não compreendo”.
Não, ela não compreendia. Como fazer com que ela visse?
“Nós tentamos”, eu lhe disse. “Em geral somos muito bons no que fazemos. Mas às vezes cometemos erros. Eu, por exemplo, me permitindo estar sozinho com você”
Seu cheiro ainda era uma força no carro. Eu estava me acostumando com ela, podia quase ignorá-la, mas não se podia negar que meu corpo ainda ansiava por ela pelo motivo errado. Minha boca estava nadando no veneno.
“Isso é um erro?”, ela perguntou, sua voz angustiada. Este som me desarmou. Ela queria estar comigo – apesar de tudo, ela queria estar comigo.
A esperança me inundou de novo, e eu a rebati.
“Um erro muito perigoso”, eu lhe disse cheio de certeza, desejando que a verdade pudesse de alguma forma passar a importar.
Ela não respondeu por um instante. Eu ouvir sua respiração mudar – ela hesitou de maneiras estranhas, que não soavam como medo.
“Conte-me mais”, ela disse subitamente, suas voz distorcida com angústia.
Eu examinei-a cuidadosamente.
Ela estava sofrendo. Como eu havia permitido isso?
“O que mais você quer saber?”, eu perguntei, tentando pensar numa maneira de livrá-la do sofrimento. Ela não deveria sofrer. Eu não podia deixá-la sofrer.
“Conte por que você caça animais ao invés de pessoas”. ela disse, ainda angustiada.
Não era óbvio? Ou talvez isso também não importasse para ela.
“Eu não quero ser um monstro”, murmurei.
“Mas animais são o bastante?”
Eu procurei por outra comparação, uma maneira de fazê-la entender. “Não posso ter certeza, claro, mas eu compararia com viver de tofu e leite de soja; nós nos chamamos de vegetarianos, nossa piadinha interna. Não sacia completamente a fome – ou melhor, a sede. Mas nos mantém fortes o suficiente para resistir. Na maior parte do tempo”. Minha voz ficou mais baixa; eu estava envergonhado do perigo que a havia permitido passar. Perigo que eu continuava permitindo...
“Em algumas vezes é mais difícil do que em outras”.
“Está sendo muito difícil para você agora?”
Eu suspirei. Era claro que ela faria as perguntas que eu não queria responder. “Sim”, admiti.
Desta vez, sua resposta física correspondeu às minhas expectativas: sua respiração permaneceu estável, seu coração batendo no ritmo normal. Eu esperava isso, mas não compreendia. Como ela podia não estar com medo?
“Mas agora você não está com fome”, ela declarou, perfeitamente de si mesma.
“Por que você acha isso?”
“Seus olhos”, ela disse, seu tom espontâneo. “Eu disse que tinha uma teoria. Eu percebi que as pessoas – os homens em particular – ficam mais mal-humorados quando estão com fome”.
Eu soltei um risinho ao ouvir sua descrição: mal-humorado. Aí estava uma expressão um tanto modesta. Mas estava correta, como sempre. “Você é observadora, não?”. Eu ri novamente.
Ela sorriu um pouco, a ruga entre seus olhos retornando, como se ela estivesse se concentrando em algo.
“Você estava caçando neste fim de semana, com Emmett?”, ela perguntou depois que eu parei de rir. Sei jeito casual de falar era tão fascinante o quanto era frustrante. Será que ela realmente podia aceitar tudo isso sem se abalar? Eu estava mais próximo de entrar em choque do que ela parecia estar.
“Sim”, eu lhe disse; e então, quando estava prestes a deixar o assunto morrer, eu senti a mesma urgência que havia sentido no restaurante: queria que ela me conhecesse. “Eu não queria partir”, continuei lentamente, “mas foi necessário. É um pouco mais fácil estar perto de você quando não estou com sede”.
“Por que você não queria partir?”
Eu respirei fundo, e então me virei para encontrar seu olhar. Este tipo de honestidade era difícil por motivos totalmente diferentes.
“Me deixa... nervoso”. Eu supus que esta palavra bastaria, apesar de não ser forte o suficiente. “Estar longe de você. Eu não estava brincando quando te pedi para não cair no oceano ou ser atropelada na última quinta. Fiquei distraído o final de semana inteiro, preocupado com você. E depois do que aconteceu hoje, estou surpreso por você ter sobrevivido a um final de semana inteiro sem nenhum arranhão”. E então me lembrei dos arranhões nas palmas de suas mãos. “Bem, quase nenhum arranhão”, corrigi.
“O quê?”
“Suas mãos”, recordei-lhe.
Ela suspirou e fez uma careta. “Eu caí”.
Eu havia adivinhado corretamente. “Foi o que eu pensei”, eu disse, incapaz de conter meu sorriso. “Eu suponho que, sendo você, poderia ter sido muito pior – e essa possibilidade me atormentou durante todo o tempo em que eu estive longe. Foram três dias bem longos. Eu realmente dei nos nervos de Emmett”. Honestamente, isso não correspondia apenas ao tempo passado. Eu provavelmente ainda estava irritando a Emmett, e todo o resto da família também. Exceto a Alice...
“Três dias?”. Ela perguntou, sua voz subitamente cortante. “Você não voltou só hoje?”
Não entendi o nervosismo em sua voz. “Não, nós voltamos no domingo”.
“Então por que nenhum de vocês foi ao colégio?”, ela demandou. Sua irritação me deixou confuso. Ela não parecia perceber que sua pergunta era de novo uma daquelas relacionadas com os mitos.
“Bem, você perguntou se o sol me queima, e a resposta é não”. Eu disse. “Mas eu não posso sair por aí na luz do sol; pelo menos, não quando alguém possa me ver”.
Isso a distraiu de sua misteriosa irritação. “Por quê?”, ela perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
Eu duvidei que pudesse encontrar uma analogia apropriada para responder esta. Então eu simplesmente lhe disse “Eu te mostro alguma hora”. E então me perguntei se esta era uma promessa que eu acabaria quebrando. Será que eu a veria de novo, depois desta noite? Será que eu a amava o suficiente para ser capaz de deixá-la?
“Você poderia ter me ligado”, ela disse.
Que conclusão estranha. “Mas eu sabia que você estava segura”.
“Mas eu não sabia onde você estava. Eu – ”. Ela parou abruptamente, e olhou para suas mãos.
“O quê?”
“Eu não gostei”, ela disse timidamente, a pele sobre suas bochechas ficando mais quente. “De não te ver. Me deixou nervosa também”.
Está feliz agora? , demandei de mim mesmo. Bem, aqui estava meu prêmio por ter esperanças.
Eu estava desorientado, exultante, horrorizado – principalmente horrorizado – de perceber que todas as minhas alucinações mais ousadas não haviam sido tão distantes da realidade. Este era o motivo porque não importava para ela que eu fosse um monstro. Porque certo e errado não eram mais influências que me compeliam. Porque todas as minhas prioridades haviam descido um degrau, para ceder lugar no topo para esta garota.
Bella gostava de mim, também.
Eu sabia que não podia ser nada em comparação ao quanto eu a amava. Mas era o bastante para que ela arriscasse sua vida e se sentasse aqui comigo. Para que ela o fizesse de bom grado.
Era o bastante para fazê-la sofrer se eu fizesse a coisa certa e a deixasse.
Havia alguma coisa que eu pudesse fazer agora que não iria machuca-la? Qualquer uma que fosse?
Eu devia ter ficado longe. Eu devia nunca ter voltado a Forks. Eu não lhe causaria nada que não fosse dor.
E agora, será que isso me impediria de ficar? De piorar as coisas?
A maneira como eu me sentia agora, sentindo seu calor contra a minha pele...
Não. Nada me impediria.
“Ah”, rosnei para mim mesmo. “Isso é errado”.
“Foi algo que eu disse?”, ela perguntou, rapidamente querendo assumir a culpa.
“Você não vê, Bella? Uma coisa é eu me fazer miserável, mas outra completamente diferente é você se envolver tanto. Eu não quero ouvir que você se sente assim”. Era a verdade, era uma mentira. A parte mais egoísta de mim estava voando por saber que ela me queria tanto quanto eu a queria. “É errado. Não é seguro. É perigoso, Bella – por favor, aceite isso”.
“Não”. Seus lábios fizeram um beicinho, petulantes.
“Estou falando sério”. Eu estava batalhando comigo mesmo tão intensamente – metade desesperado para que ela aceitasse, metade desesperado para guardar os avisos de que ela devia escapar – que as palavras escaparam pelos meus dentes como um rosnado.
“Eu também”, ela insistiu. “Eu te disse, não importa o que você é. É tarde demais”.
Tarde demais? O mundo estava sombriamente preto e branco por um interminável segundo, conforme eu assistia na minha lembrança as sombras se arrastarem pelo campo na direção de Bella enquanto ela dormia. Inevitáveis, irreversíveis. Elas roubavam a cor de sua pele, e a submergiam na escuridão.
Tarde demais? A visão de Alice girava na minha cabeça, os olhos de Bella vermelhos de sangue me encarando indiferentes. Inexpressivos – mas não havia como ela poderia não me odiar por aquele futuro. Me odiar por ter roubado tudo o que ela tinha. Roubado sua vida e sua alma.
Não podia ser tarde demais.
“Nunca diga isso”, eu sibilei.
Ela olhou para fora da janela, e começou a morder o lábio de novo. Suas mãos estavam fechadas em punhos no seu colo. Sua respiração acelerada e entrecortada.
“O que você está pensando?”. Eu tinha que saber.
Ela balançou a cabeça sem me olhar. Eu vi alguma coisa cintilar, como um cristal, em sua bochecha.
Agonia. “Você está chorando?”. Eu a havia feito chorar. Eu a havia machucado tanto assim.
Ela esfregou as lágrimas com a parte de trás de sua mão.
“Não”, ela mentiu, com a voz partida.
Algum instinto há muito tempo enterrado me fez estender a mão em sua direção – naquele segundo eu me senti mais humano do que jamais havia me sentido. E então eu lembrei que eu... não era. E abaixei minha mão.
“Sinto muito”, eu disse, minha mandíbula travada. Como eu poderia jamais dizer a ela o quanto eu sentia muito? Sentia muito por todos os erros estúpidos que eu havia cometido. Sentia muito por meu egoísmo interminável. Sentia muito que ela fosse tão infortunada que havia inspirado em mim este primeiro, trágico amor. Sentia muito também pelas coisas fora do meu controle – que eu havia sido o monstro escolhido pelo destino para encerrar sua vida, para começar.
Eu respirei profundamente – ignorando minha reação infeliz ao sabor no carro – e tentei me recompor.
Eu queria mudar de assunto, pensar em alguma outra coisa. Para minha sorte, minha curiosidade a respeito da garota era insaciável. Eu sempre tinha uma pergunta.
“Me conte uma coisa”, eu disse.
“O quê?”, ela disse rouca, ainda com lágrimas em sua voz.
“No que você estava pensando hoje, logo antes de eu virar a esquina? Eu não pude entender sua expressão – você não parecia tão assustada, você parecia estar se concentrando muito forte em algo”. Eu lembrei de seu rosto – forçando-me a esquecer de quem eram os olhos pelos quais eu olhava -, a expressão de determinação que havia nele.
“Eu estava tentando lembrar como incapacitar um agressor”, ela disse, sua voz mais composta. Você sabe, autodefesa. Eu ia esmagar seu cérebro com o seu nariz”. Mas a compostura não durou até o fim da explicação. Seu tom se enfureceu até que estava repleto de raiva. Isso não era uma hipérbole, e sua fúria de gatinho não era engraçada agora. Eu podia ver sua figura frágil – como seda sobre o vidro – encoberta pelos humanos corpulentos, fortes, que a teriam machucado. A fúria fervia no fundo da minha cabeça.
“Você ia enfrentá-los?”. Eu queria gemer. Seus instintos eram mortais – para ela mesma. “Você não pensou em fugir?
“Eu caio muito quando corro”, ela disse embaraçada.
“E quanto a gritar por ajuda?”
“Estava chegando nesta parte”.
Eu balancei a cabeça, desacreditando. Como ela havia conseguido permanecer viva antes de vir para Forks?
“Você estava certa”, eu disse, minha voz azeda. “Eu estou definitivamente lutando contra o destino tentando mantê-la viva”.
Ela suspirou, e olhou pela janela. Então me olhou novamente.
“Eu irei te ver amanhã?”, ela demandou abruptamente.
Já que eu estava no meu caminho para o inferno – eu poderia pelo menos apreciar a viagem.
“Sim – eu também tenho um trabalho para entregar”. Eu sorri para ela, e me senti bem ao fazê-lo. “Vou guardar um lugar para você no almoço”.
Seu coração disparou; meu coração morto de repente parecia ter se aquecido.
Eu parei o carro na frente da casa de seu pai. Ela não fez menção de me deixar.
“Você promete que estará lá amanhã?”, ela insistiu.
“Eu prometo”.
Como podia ser que fazer a coisa errada me desse tanta felicidade? Com certeza devia haver alguma coisa ali que eu não estava entendendo direito.
Ela acenou com a cabeça para si mesma, e começou a tirar minha jaqueta.
“Pode ficar”, eu lhe disse rapidamente. Eu realmente queria deixar-lhe com algo que fosse meu. Uma lembrança, como a tampinha de garrafa que estava no meu bolso agora... “Você não tem uma jaqueta para amanhã”.
Ela a devolveu para mim, sorrindo com remorso. “Eu não quero ter que explicar nada para Charlie”, ela disse.
Eu imaginaria que não. Eu sorri para ela: “Oh, claro”.
Ela colocou a mão na maçaneta da porta, e então parou. Não querendo sair, tanto quanto eu não queria deixá-la ir.
Deixá-la desprotegida, mesmo que por alguns minutos...
Peter e Charlote já estavam longe a esta altura, já distantes de Seattle, sem dúvida. Mas sempre havia outros. Este mundo não era um lugar seguro para nenhum humano, e parecia ser mais perigoso para ela do que para o resto.
“Bella?”, perguntei, surpreso pelo prazer que sentia em simplesmente dizer seu nome.
“Sim?”
“Você me promete uma coisa?”
“Sim”, ela concordou com facilidade, e então seus olhos se estreitaram como se tivessem pensado em um motivo para protestar.
“Não vá à floresta sozinha”, eu a alertei, imaginando se este pedido dispararia a objeção em seus olhos.
Ela piscou, alarmada. “Por quê?”
Eu tive raiva da escuridão indigna de confiança. A falta de luz não era problema para os meus olhos, mas também não era para os de outro caçador. Ela só cegava os humanos.
“Nem sempre eu sou a coisa mais perigosa que há por aí”, eu disse. “Vamos deixar assim”.
Ela teve um calafrio, mas se recuperou rapidamente e estava até mesmo sorrindo quando falou: “O que você disser”.
Seu hálito tocou minha face, tão doce e perfumado.
Eu poderia ficar aqui assim a noite inteira, mas ela precisava de seu sono. Os dois desejos pareciam igualmente fortes conforme continuaram guerreando dentro de mim: querendo a ela contra querendo que ela estivesse a salvo.
Eu suspirei frente às impossibilidades. “Te vejo amanhã”, eu disse, sabendo que a veria muito antes disso. Entretanto, ela não veria a mim.
“Amanhã, então”, ela concordou enquanto abria a porta.
Agonia novamente, vendo-a partir.
Eu me inclinei em sua direção, querendo segurá-la aqui. “Bella?”
Ela se virou, e então congelou, surpresa por encontrar nossos rostos tão próximos um do outro.
Eu, também, estava dominado pela proximidade. O calor emanava dela em ondas, acariciando meu rosto. Eu só podia sentir a maciez de sua pele...
Seus batimentos aceleraram, e seus lábios se abriram.
“Durma bem”, eu suspirei, e me inclinei de volta antes que a urgência no meu corpo – tanto a sede familiar quanto a inteiramente nova e estranha fome que eu subitamente sentia – pudesse fazer-me fazer algo que a machucasse.
Ela permaneceu sentada por um momento, sem reação, seus olhos arregalados e atordoados. Deslumbrava, eu achei.
Como eu estava.
Ela se recuperou – embora ainda estivesse com uma expressão confusa – e cambaleou para fora do carro, tropeçando em seus pés e tendo que se apoiar na estrutura do carro para endireitar-se.
Eu dei um risinho – torcendo que tivesse sido baixo demais para ela ouvir.
Eu assisti-a cambalear no caminho até a fonte de luz que circundava a porta da frente de sua casa. Segura por enquanto. E eu logo estaria de volta para checar.
Eu podia sentir seus olhos me seguindo conforme eu dirigia pela rua escura. Uma sensação tão diferente do que eu estava acostumado. Usualmente, eu poderia simplesmente assistir a mim mesmo pela mente de alguém que me seguisse com os olhos, se assim eu quisesse. Isto era estranhamente excitante – esta sensação intangível de ser vigiado. Eu sabia que era apenas porque eram os olhos dela.
Um milhão de pensamentos perseguiam uns aos outros na minha mente, conforme eu dirigia sem rumo pela noite.
Por um longo tempo eu circulei pelas ruas, indo a lugar nenhum, pensando em Bella e na inacreditável liberdade de tê-la sabendo a verdade. Não mais eu teria que temer que ela descobrisse o que eu era. Ela sabia. E não se importava. Apesar de isso ser uma coisa obviamente ruim para ela, era maravilhosamente libertador para mim.
Mais do que isso, eu pensei em Bella e em amor correspondido. Ela não poderia me amar da maneira como eu a amava – um amor tão dominador, devastador, esmagador provavelmente romperia seu corpo frágil. Mas o que ela sentia era forte o suficiente. Suficiente para subjugar o medo instintivo. Suficiente para que ela quisesse estar comigo. E estar com ela era a maior felicidade que eu jamais havia conhecido.
Por um momento – enquanto eu estava sozinho e sem ninguém por perto que pudesse se machucar – eu permiti a mim mesmo sentir a felicidade sem residir na tragédia. Apenas ficar feliz por ela gostar de mim. Apenas exultar-me com o triunfo de ganhar sua atenção. Apenas imaginar-me dia após dia sentando-me próximo a ela, ouvindo sua voz e conquistando seus sorrisos.
Eu repassei aquele sorriso na minha mente, vendo seus lábios cheios levantando nos cantos, o esboço de covinha que aparecida em seu queixo fino, a maneira como seus olhos se aqueciam e derretiam... seus dedos estavam tão quentes e macios em minha mão esta noite. Eu imaginei qual seria a sensação de tocar a pele delicada que se estendia sobre os ossos de sua bochecha – macia, quente... tão frágil. Seda sobre o vidro... assustadoramente quebrável.
Eu não consegui perceber para onde meus pensamentos rumavam até que fosse tarde demais. Conforme eu refletia sobre aquela vulnerabilidade devastadora, novas imagens de seu rosto invadiram minhas fantasias.
Perdida nas sombras, pálida de medo – ainda assim com seu queixo travado e determinada, seus olhos firmes, cheios de concentração, seu corpo delgado posicionando-se para atacar as formas enormes que se reuniam ao seu redor, pesadelos na escuridão...
“Ah”, gemi enquanto o ódio latente de que eu havia me esquecido na alegria de amá-la explodiu novamente num inferno de raiva.
Eu estava sozinho. Bella estava, eu confiava, segura dentro de sua casa; por um momento eu estava incrivelmente feliz por Charlie Swan – chefe da polícia local, treinado e armado – ser seu pai. Isso devia significar alguma coisa, provê-la de algum abrigo.
Ela estava segura. Eu não levaria tanto tempo para vingar a agressão...
Não. Ela merecia mais. Eu não podia permitir que ela tivesse sentimentos por um assassino.
Mas... e quanto às outras?
Bella estava segura, sim. Angela e Jessica também estavam, seguramente, a salvo em suas camas.
Ainda assim, um monstro estava à solta nas ruas de Port Angeles. Um monstro humano – será que isso fazia dele problema dos humanos? Cometer o assassinato que eu ardia por cometer era errado. Eu sabia disso. Mas deixá-lo livre para atacar novamente tampouco poderia ser a coisa certa.
Ainda assim, um monstro estava à solta nas ruas de Port Angeles. Um monstro humano – será que isso fazia dele problema dos humanos? Cometer o assassinato que eu ardia por cometer era errado. Eu sabia disso. Mas deixá-lo livre para atacar novamente tampouco poderia ser a coisa certa.
Eu não direi nada. Mas me faça um favor e conte a Rosalie quando eu não estiver por perto, ok? /
Eu me contraí. “Claro”.
Bella encarou muito bem.
“Bem demais”.
Alice abriu um sorriso. Não subestime a Bella.
Tentei bloquear a imagem que eu não queria ver – Bella e Alice, melhores amigas.
Impaciente agora, eu suspirei pesadamente. Queria prosseguir com a próxima parte da noite; queria acabar logo com isso. Mas estava um pouco preocupado por deixar Forks...
“Alice...”, eu comecei. Ela viu o que eu estava planejando.
Ela estará bem esta noite. Estou vigiando melhor agora. Ela meio que precisa de supervisão vinte e quatro horas, não?
“No mínimo”.
“De qualquer forma, você vai estar com ela em pouco tempo”.
Eu respirei fundo. Aquelas palavras eram lindas para mim.
“Vá em frente – resolva isso logo para que você possa estar onde deseja estar”, ela disse.
Eu acenei com a cabeça, e me apressei em direção ao escritório de Carlisle.
Ele estava esperando por mim, seus olhos na porta e não no grosso livro em sua mesa.
“Eu ouvi Alice dizendo-lhe onde me encontrar”, ele disse, e sorriu.
Era um alívio estar com ele, e ver a empatia e a profunda inteligência em seus olhos. Carlisle saberia o que fazer.
“Preciso de ajuda”.
“Qualquer coisa, Edward”, ele prometeu.
“Alice te contou o que aconteceu com Bella esta noite?”
Quase aconteceu, ele corrigiu.
“Sim, quase. Estou num dilema, Carlisle. Veja bem, eu quero... muito... matá-lo”. As palavras começaram a fluir mais rápido e emotivas. “Demais. Mas eu sei que isso seria errado, porque seria vingança, e não justiça. Tudo por raiva, e não imparcialidade. Ainda assim, não pode ser a coisa certa deixar um estuprador assassino vagando por Port Angeles! Eu não conheço os humanos ali, mas não posso deixar que outra pessoa tome o lugar de Bella como sua vítima. Aquelas outras mulheres – alguém pode sentir por elas o que eu sinto por Bella. Pode sofrer o que eu teria sofrido se ela tivesse sido ferida. Não está certo-“
Seu largo e inesperado sorriso interrompeu o fluxo das minhas palavras.
Ela é muito boa para você, não? Tanta compaixão, tanto controle. Estou impressionado. /
“Não estou buscando por elogios”.
“Claro que não. Mas não posso impedir meus pensamentos, posso?”. Ele sorriu novamente. “Tomarei conta disso. Pode descansar sossegado. Ninguém mais irá se ferir no lugar de Bella”.
Eu vi o plano em sua mente. Não era exatamente o que eu queria, não satisfazia minha ânsia por brutalidade, mas eu podia ver que era a coisa certa a ser feita.
“Vou te mostrar onde encontrá-los”, eu disse.
“Vamos”.
No caminho, ele agarrou sua bolsa preta. Eu teria preferido um tipo mais agressivo de sedativo – como um crânio rachado – mas deixaria Carlisle fazer do jeito dele.
Nós pegamos meu carro; Alice ainda estava nas escadas. Ela sorriu e acenou enquanto saíamos com o carro. Eu vi em sua mente o que ela havia visto para mim. Nós não teríamos dificuldades.
A viagem foi muito curta na estrada escura e vazia. Eu baixei meus faróis para não chamar atenção. Me fez sorrir pensar em como Bella teria reagido a esta velocidade. Eu já estava dirigindo mais devagar que o usual – para prolongar meu tempo com ela – quando ela reclamou.
Carlisle também estava pensando em Bella.
Eu não antecipei que ela seria tão boa para ele. Isto é inesperado. Talvez estivesse de alguma forma destinado a acontecer. Talvez seja por um bem maior. Só que...
Ele visualizou Bella com a pele fria como a neve e olhos vermelhos de sangue, e então se retraiu da imagem.
Sim. Só que/. De fato. Porque como poderia existir qualquer bem em destruir alguém tão puro e amável?
Eu olhei para a noite irritado, toda a alegria deste dia destruída por seus pensamentos.
Edward merece felicidade. Ele tem esse direito. A firmeza dos pensamentos de Carlisle me surpreendeu. Tem que haver um jeito.
Eu quis poder acreditar neles – em qualquer um deles. Mas não havia bem maior no que estava acontecendo com Bella. Apenas um destino amargo, feio, malicioso como uma harpia, que não podia suportar que Bella tivesse a vida que merecia.
Eu não permaneci em Port Angeles. Levei Carlisle ao bar imundo onde a criatura chama Loonie estava afogando seu desapontamento com seus amigos – dois deles já desmaiados. Carlisle percebeu como era difícil para mim estar tão próximo – como era difícil para mim ouvir os pensamentos do monstro e ver suas memórias, memórias de Bella misturadas com outras sobre outras garotas que haviam tido menos sorte, e que agora ninguém poderia salvar.
Minha respiração acelerou. Eu agarrei o volante.
Vá, Edward, ele me disse gentilmente. Eu farei com que as outras fiquem seguras. Você volte para Bella.
Era exatamente a coisa certa para se dizer. Seu nome era a única distração que poderia significar qualquer coisa para mim agora.
Eu o deixei no carro, e corri de volta para Forks numa linha reta através da floresta que dormia. Levou menos tempo do que na primeira jornada com o carro. Haviam se passado apenas alguns minutos quando eu escalei pelo lado de sua casa e deslizei sua janela para fora do meu caminho.
Eu suspirei silenciosamente, aliviado. Tudo estava como deveria estar. Bella estava segura em sua cama, sonhando, seus cabelos molhados espalhados como uma alga marinha pelo travesseiro.
Mas, ao contrário das outras noites, ela estava encolhida numa pequena bola com as cobertas esticadas sobre seus ombros. Com frio, pensei. Antes que pudesse me acomodar em meu assento usual, ela teve um calafrio, e seus lábios tremeram.
Eu pensei por um breve momento, e então saí para o corredor, explorando outra parte da casa pela primeira vez.
Os roncos de Charlie eram altos e constantes. Eu quase pude captar o tema de seu sonho. Algo sobre água passando e paciência para esperar... pescaria, talvez?
Ali, no topo das escadas, havia um armário promissor. Eu o abri esperançosamente, e encontrei o que procurava. Eu escolhi o cobertor mais grosso dentre os mais finos de linho, e o levei de volta para o seu quarto. Eu o devolveria antes que ela acordasse, e ninguém ficaria sabendo.
Segurando o fôlego, eu cuidadosamente ajeitei o cobertor sobre ela; ela não reagiu ao peso adicional. Eu retornei à cadeira de balanço.
Enquanto esperava ansiosamente que ela se aquecesse, eu pensei em Carlisle, imaginando onde ele estaria agora. Eu sabia que seu plano se realizaria sem complicações – Alice havia visto.
Pensar em meu pai me fez suspirar – Carlisle me dava crédito demais. Eu desejei ser a pessoa que ele pensava de mim. Aquela pessoa, a que merecia felicidade, poderia ter esperanças de merecer esta garota adormecida. Como as coisas seriam diferentes se eu fosse aquele Edward.
Enquanto eu ponderava sobre isso, uma estranha e inesperada imagem preencheu minha mente.
Por um momento, a imagem que eu havia visualizado para o destino, de uma bruxa que buscava a destruição de Bella, foi substituída pela imagem do mais tolo e descuidado dos anjos. Um anjo da guarda – algo que a versão de Carlisle sobre mim teria tido. Com um sorriso desatento, seus olhos da cor do céu cheios de travessura, o anjo formou Bella de tal maneira que não houvesse como eu não reparar nela. Um aroma impossivelmente forte para demandar minha atenção, uma mente silenciosa para inflamar minha curiosidade, uma beleza tranqüila para captar meus olhos, uma alma generosa para merecer minha admiração. Deixou fora o senso de auto-preservação – de forma que Bella pudesse estar perto de mim – e, finalmente, adicionou uma grande quantidade de má sorte para que eu me preocupasse.
Com uma risada descuidada, o anjo irresponsável atirou a criatura frágil diretamente no meu caminho, confiando despreocupadamente em minha moralidade imperfeita para manter Bella viva.
Nesta visão, eu não era a sentença de Bella; ela era meu prêmio.
Eu balancei a cabeça para a imagem do anjo inconseqüente. Ele não era muito melhor que a harpia. Eu não era capaz de pensar bem de um poder superior que agisse de maneira tão perigosa e estúpida. Pelo menos contra o destino horroroso eu podia lutar.
E eu não tinha nenhum anjo. Eles eram reservado para pessoas boas – para pessoas como Bella. E onde estava o anjo de Bella nesta história? Quem estava tomando conta dela?
Eu ri silenciosamente, alarmado, quando percebi que, no momento, eu estava justamente cumprindo esse papel.
Um anjo vampiro – uma extensão.
Depois de aproximadamente uma hora, Bella relaxou da posição em que havia estado encolhida. Sua respiração ficou mais profunda e ela começou a murmurar. Eu sorri, satisfeito. Era uma coisa pequena, mas pelo menos ela estava dormindo mais confortável esta noite porque eu estava aqui.
“Edward”, ela suspirou, e então sorriu, também.
Eu empurrei a tragédia de lado por um instante, e permiti a mim mesmo ser feliz de novo.
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